quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Contos de Matusalém #1

Aconteceu em uma época onde as coisas não eram deixadas para trás nem esquecidas em gavetas. Não precisávamos nos preocupar com portas trancadas nem com ferros de passar ligados.
Era uma tarde de segunda-feira.
Matusalém era um pequeno raminho saudável e morava com seus pais no fim do vale, estava brincando no infinito quintal de sua morada, desenhando em um pequeno espaço de terra que acabara de limpar, havia colhido e amontoado todas as folhas que conseguira, formando uma enorme pilha de sujeira. Com uma de suas pequenas extremidades, traçava finas e precisas linhas no solo, concentrado nos curtos pensamentos de seu pequeno cérebro e nos movimentos que fazia, não errou um traço sequer. Sua atenção era tão limitada quanto deveria ser para uma plantinha juvenil, por isso não percebera a aproximação quase inaudível de sua mãe. A gigantesca árvore ficou parada acima dos tímidos galhos mais altos do raminho desenhista.
- Nossa, que desenho bonito! O que é? - Uma doce voz cortou sua concentração. - É uma arvore? - Indagou a gigante baobá.
O raminho ficou olhando sobre seus galhos baixos para as raízes de sua mãe, nunca vira seu rosto, mas isto nunca fez a menor diferença, nenhum dos raminhos do vale já o havia feito. Respondeu:
- É sim, sou eu! - Disse enquanto riscava um grande sorriso que preenchia toda a extensão do desenho - e olha como estou feliz! - Completou.
A baobá riu serenamente perante a imaginação de sua cria. Ela era professora no vale e sabia como era raro um raminho que se preocupasse com o futuro. Virou-se para as copas de Pelagus e vislumbrou o último pôr do sol do dia. As árvores maiores preenchiam toda aquela vastidão e escalavam até mesmo as gigantescas montanhas Gaia Retrorsum.
O vale lembrava um enorme prato de sopa de espinafre, suas extremidades eram formações rochosas milenares e maravilhosas, havia árvores e pássaros dos mais variados tipos que preenchiam completamente o centro côncavo da gigantesca tigela, alguns deles se dispersavam à medida que se aproximavam das beiradas. A densa parte central era composta pelas árvores mais antigas do planeta, as primeiras formas de vida vegetal a emergirem sobre aquele jardim gigantesco e eram conhecidas como os líderes daquela sociedade vegetal, os anciões - como eram chamados - estavam envoltos por árvores mais jovens e estas por sua vez, envoltas por árvores ainda mais jovens. Ao contrário dos líderes humanos que conhecemos, as plantas têm uma intensa satisfação por estarem completamente rodeadas por sua espécie.
O planeta das árvores não tinha nome próprio, pois seus habitantes jamais poderiam dizer com firmeza o que era aquele imenso jardim onde moravam, tão pouco sabiam da existência dos outros milhares de planetas ou do vasto universo que os rodeava. Á princípio, as pequenas e poucas criaturas que cuidavam das planícies, antes do nascimento de algum dos ramos que originariam as primeiras árvores, desenvolveram asas, porém algumas delas eram desajeitadas ou pesadas demais para voar. Os primeiros seres a saírem do chão e voarem pelos ares do jardim foram os pequenos animais posteriormente apelidados de Liberums, nesta época as plantas já dominavam cerca de quarenta hectares do que um dia se chamaria Pelagus, assim puderam presenciar aquelas pequenas criaturas peludas e dentuças voando por aí com suas asas coloridas. A partir daquele momento, os anciões perceberam o quão importante aquelas criaturinhas poderiam ser para o estudo do planeta.
Sabiam que existiam extensões incompreensíveis de água fora da concha, nos arredores das planícies inexploradas, porém as asas em evolução dos peludinhos jamais permitiriam que voassem além delas numa viagem tão extensa, o que causou certa frustração à expectativa de sanar as curiosidades dos anciões.
Nada podendo fazer, assim seria o longo processo de exploração do planeta, toda descoberta feita seria passada para as árvores periféricas, que contariam às vizinhas que por sua vez contariam às vizinhas, repetindo-se até atingir os ouvidos das árvores centrais. Esse processo se repetiu até o nascimento da primeira baobá, plantas incrivelmente gigantescas e majestosas e que muitas vezes passavam da estatura da mãe em poucas dezenas de anos.

A primeira baobá nasceu nas periferias, como de costume, porém um fato pouco costumeiro ocorreu, o tempo se passou e aquela pré-adolescente ultrapassara a altura da mãe em um metro. As vozes ecoaram pelo vale que saudava precocemente a mais nova espécie do planeta, o gigante baobá. As palavras atingiram os ouvidos das grandes árvores centrais e um deles choramingou:
- Eu daria todas as minhas folhas para poder ver o tal gigante!
Mais uma vez as vozes ecoaram pelos galhos e em poucos dias as preces dos anciões atingiram os tímpanos da gigante.
Foi numa terça-feira e o primeiro sol já havia se posto.
As antigas árvores estavam aglomeradas como de costume, recebendo as notícias de todos os cantos do vale, quando toda a atenção foi direcionada para Greg, o quinquagésimo quarto. A árvore gritava de horror, eram palavras estridentes e ininteligíveis, balançava-se tentando remover algo de dentro de si enquanto roçava os próprios galhos contra o tronco. Gritou:
- Algo está dentro de mim! Agora, desceu e está embaixo! Algo está puxando minhas raízes!
As outras plantas o olhavam, desconcertadas, Greg nunca apresentara comportamento tão maluco, embora fosse uma das árvores mais engraçadas conhecidas. Athos, o quinquagésimo, disse:
- Ei, Greg. Fique calmo, com certeza são algumas cigarras, vá - mas foi interrompido pela horrível cena que se projetava à sua frente, algo que nunca havia testemunhado ou sequer imaginado ser possível.
A árvore deslizava como se estivesse sendo tragada pela terra através de uma areia movediça sobrenatural. Já haviam passado cerca de dois metros, depois mais quatro e mais dez, Greg agonizava afogado pela terra enquanto suas últimas folhas passavam pelo vórtice arenoso.
- Me ajudem! Me aju - suas palavras foram tragadas junto com seus últimos membros.
As múltiplas formas de vida que tinham plena consciência de que realmente haviam testemunhado o absurdo, estavam paralisadas com o terror que percorria internamente suas seivas, aguardando estaticamente pelo que veriam em seguida, as mais próximas tentavam inutilmente fugir para longe da marca que a suposta abdução de Greg deixara para trás. Os Receptores impediam quaisquer outras informações de chegarem e logo cuspiam descrições do que havia acontecido nas dependências dos anciões e com a quinquagésima quarta árvore mais antiga do vale.

As árvores receptoras tinham acabado de concluir a décima remessa de mensagens quando algumas plantas começaram a reclamar incessantemente do barulho provindo da marca no chão. Fazia apenas dez minutos desde o ocorrido e cerca de dois hectares já sabiam das notícias, do acontecimento e das palavras alarmantes dos anciões, até mesmo os Liberums foram chamados para iniciar uma busca sem esperança por Greg.

O quinto ancião havia começado sua narração, as Receptoras anotavam artisticamente as palavras que formariam a décima primeira mensagem do dia, porém uma delas parou ao perceber que uma pequena pedra rolara arbitrariamente sobre os dizeres que desenhava na terra, algo estava assustadoramente errado. Outra também parou quando notou que o chão se movia sob suas raízes e apagava os dizeres incrustados na terra. E mais outra parara, quando ouvira os gritos de terror produzidos pelas árvores dos arredores. A marca abdutiva se movia numa vibração sobrenatural, alguns até chegaram a pensar esperançosamente que Greg havia encontrado uma forma de voltar, outros pensaram desastrosamente que o mal que tragara Greg para as profundezas desconhecidas da terra estava prestes a emergir para preencher o estômago que uma única árvore não fora capaz de saciar. Todos sentiam tanto medo quanto curiosidade, mas poucos ousaram dizer alguma coisa, exceto as receptoras que narravam todos os detalhes que seus olhos permitiam descobrir.
- A marca está vibrando loucamente - dizia uma delas - posso sentir minhas raízes balançarem, é como se uma minhoca gigantesca estivesse prestes a saltar pelo buraco a uma velocidade absurda, a sensação é de completo terror, as árvores estão assustadas, as receptoras estão fazendo o mesmo que eu, os anciões estão impassíveis, cochicham entre si, sabem tanto quanto nós, o que é terrível! - fez uma pausa, olhava fixamente para a marca - a marca está aumentando, deve ser apenas impressão. Não, ela realmente está maior! Ei, espera, eu posso ver alguma coisa! Algo está saindo do buraco e é enorme! São folhas, eu não acredito, são folhas! Greg conseguiu!
As receptoras e subreceptoras gritavam velozmente, as árvores próximas falavam com extrema rapidez e precisão, todos ansiosos por reproduzirem via palavras acontecimentos nunca antes ocorridos.
Algo estranho chocou a receptora que se pôs a continuar:
- Só um momento, pessoal! Estas folhas são límpidas demais e estes galhos são maiores que os de Greg.
Uma das receptoras gritou do outro lado do recanto dos anciões:
- Acabei de receber: uma árvore desapareceu na atual periferia, próxima à Gaia Retrorsum, a desaparecida trata-se da nova espécie, a gigante baobá!
Em alguns segundos, nenhuma delas tinha mais certeza alguma, não sabiam se o que haviam presenciado era obra da imaginação ou se estavam ficando loucas. Algumas árvores descansavam inconscientes e ancoradas sobre as próprias raízes que as impediam de atingir o solo, haviam desmaiado. Os inteligentes olhos dos anciões assistiam a gigantesca extensão de casca, galhos e madeira que crescia através do buraco no chão, passaram-se galhos e folhas seguidos por dois metros de tronco, depois mais cinco e mais dez metros, em questão de segundos uma gigantesca árvore ocupava o lugar da quinquagésima quarta árvore mais velha do vale - a penetra era a árvore desaparecida de Gaia Retrorsum, a nova espécie, a gigante baobá.

- Lágrimas de Gasolina
 
 http://www.deviantart.com/art/Forest-98795458
Forest by Andead



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