quinta-feira, 5 de novembro de 2015

João e os Pés Abençoados

João segurou o solo com seus dedos, depositando toda a sua energia nas solas dos tênis de corrida. Esperou pelo estrondo que deveria vir em seguida, fechando os olhos e fazendo uma pequena prece que nunca aprendera, implorando para uma entidade invisível, para que esta fosse a ultima vez que corresse pela necessidade. Jurou a algumas pequenas frações de tempo que jamais voltaria a correr, independente do motivo, nem que sua vida dependesse disso.
Disparou em linha reta, antes que o som do tiro ecoasse pelos teus tímpanos, percorrendo como um raio uma quantidade considerável de espaço em pouquíssimo tempo. Em tuas pupilas dilatadas, apenas o reflexo de seu objetivo podia ser visto e o objetivo, era a única coisa que era vista por seus olhos. Tudo que fosse irrelevante ao destino que ele mesmo havia imposto a si, fora descartado inconscientemente por seu cérebro, tornando aquele ilusório alcance muito mais tangível do que talvez fosse.
O garoto havia percorrido um pouco mais de vinte e cinco metros quando ouviu o disparo de uma arma de fogo e os primeiros gritos, dando a ele uma vantagem absurda sobre seus adversários. O som fez com que uma sequela de seus dias passados retornasse num lapso momentâneo, fazendo-o com que se lembrasse da promessa que fizera e dos motivos que o levaram a fazê-la.

Aprendeu a andar muito novo, aprendeu a correr nos meses que se seguiram, nunca fora suficientemente desengonçado para cair em nenhuma das tentativas, foi uma criança com joelhos abençoados e o mais veloz entre os garotos do bairro, mas houve uma vez, que ao entrar pelas portas da biblioteca pública do colégio em que estudava, encontrou um pequeno livro de bolso que descansava sobre a mesa. Devorou aquelas páginas como conseguira, com uma leitura precariamente aprendida através do precário ensino público e foi a partir daquele momento, que percebeu uma severa semelhança entre aquelas páginas, o personagem e ele mesmo. Percebeu que o garoto da estória, corria como o vento, assim como ele, mas sempre que corria, era para fugir de algum problema ou consequência. Então, percebera que ele, João, fazia o mesmo.
Jurou que nunca mais correria para se livrar de quaisquer problemas, consequências ou medos e os enfrentaria em um suave caminhar, se privando da maior de suas habilidades: Correr.

- "Correr" - foi o que pensou, quando viu o corpo do seu irmão mais velho caído no chão.
- "Correr" - foi o que pensou enquanto aguardava pelo segundo tiro.
- "Correr" - foi o que pensou quando colocou os dedos no chão e direcionou o queixo para frente, depositando toda a sua energia nas solas dos tênis de corrida.
Correr foi o que fizera parar. Por um instante, quando se lembrou da promessa feita, após segundos que iniciara a corrida, o garoto frenou por entre as sombras noturnas de seu bairro e caminhou por entre o breu e com a suavidade de uma leve brisa marítima, passou por entre as sombras e restos de concreto que provavelmente passariam despercebidos por seus olhos caso estivesse correndo. Alguns tiros voaram pela noite, enquanto barracos ribeirinhos acendiam as luzes e abriam as janelas, despertados pelos estrondosos projeteis.
Algumas figuras cruzaram as ruas em grande velocidade, não dando importância a uma figura pequenina que caminhava em direção ao ponto de ônibus.

João permaneceu ali durante o resto da noite, não pegou nenhum ônibus e caminhou até a escola do outro lado da cidade, onde provavelmente caminharia até a sala do diretor e seria encaminhado ao conselho tutelar.

- Lágrimas de Gasolina


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