sábado, 14 de novembro de 2015

O Lobo e O Rato

Aproximou-se de um dos espelhos do quarto e admirou o próprio resto de existência enquanto arrumava o colarinho. Tentou imaginar os dias que se seguiriam e moveu os olhos em direção a uma gota que escorrera de algum orifício facial, provavelmente um dos olhos. Levou uma das mãos até o rosto e tocou aquela lágrima, que grudou em seu dedo indicador como uma criança que abraça o pai que vai viajar. Por alguns segundos, encarou a figura refletida, um homem bem vestido segurando uma gota de água pelos dedos. Em seguida, dirigiu o dedo úmido em direção aos lábios, fazendo-o percorrer toda a extensão de sua boca. Secou os olhos, se virou, apanhou uma pequena pasta cinzenta que descansava ao pé da cama e saiu.
Por um momento, parou em frente à porta de saída, um dos braços estava estendido e alguns dos dedos acariciavam a maçaneta e pensou em cada pequena mudança que fizera até aquele momento, e em como todas elas haviam se transformado em um amontoado de ações sem qualquer valor.
Lembrou-se de todas as vezes que acordara para trabalhar e correra até o banheiro para um curto banho, das vezes que escovara os dentes e atentamente girava o registro, obstruindo o desperdício, das vezes em que chupara alguma bala e guardara as embalagens no bolso. Tudo aquilo só serviu para resgatar a lembrança de seus pais que sempre diziam:
-"Se vai deixar algo para as outras pessoas, que não seja uma pilha de lixo. Se quiser levar algo consigo, que não seja a oportunidade dos outros verem as arvores como são hoje”.
Tentou girar a maçaneta, percebeu que estava travada e se deu conta de que a mesma estava trancada. Olhou para as letras vermelhas marcadas em sua pasta - Curriculum Vitae - Direcionou o rosto para o molho de chaves dependurado sobre um gancho ao lado da porta, ao lado de uma máscara branca de médico. Pegou a chave, percorreu todas numa seleção cirúrgica e colocou a correta na fechadura, e girou, retirou-a e guardou em um dos bolsos. Dirigiu uma das mãos até a maçaneta e assim ficou por alguns segundos, aquela figura estática, inconsolável e bem vestida, em pé, segurando uma pasta cinza, tão cinza quanto teus olhos e pele, dirigindo um olhar infeliz para a entrada de um mundo que tanto lutara para que não se materializasse. Forçou-se para girar o pulso impotentemente fragilizado e franzino, mas parou e virou os olhos para a atual tendência de vestuário que pendia ao lado da porta. Esticou os dedos e agarrou a máscara, uma existência raivosamente cega e inocente, comparou-se a um rato rodeado pelo fogo e o muro de concreto, a um lobo de olhos furados que consome a própria pata para fugir de uma armadilha de urso, mas que se dá conta de que quando liberto, não saberá para onde ir e nem o que fará com o ferimento. Seus olhos ficaram molhados mais uma vez quando se lembrou da impossibilidade de ter filhos, uma lágrima escorreu quando se deu conta que se um dia viesse à possibilidade de ter herdeiros e os tivesse, não poderiam fazer aquele tipo de comparação. A gota deslizou até seus lábios secos, que a tragou de volta para dentro de seu corpo.
Tirou uma goma de mascar do bolso, abriu delicadamente o doce que a muito havia substituído sua escovação diária, observou a volta feita quando ele puxava as extremidades da embalagem, o pegou e o jogou na boca. Dirigiu a máscara até o nariz e contornou suas orelhas com os laços, fixando-a em seu rosto.
Girou o punho e abriu a porta de uma vez. Seus lábios se tornaram secos e seu rosto empoeirado, caminhou até o meio fio e gritou pelo taxista. Seus olhos enchidos pela maré amarelada dos céus e pelos jornais e restos de papel que caminhavam pelas ruas. Não chorou.
-"Distrito Industrial" - respondeu, enquanto limpava a poeira da camisa.
Em algum canto escuro de suas vestimentas, uma pequena embalagem amassada verde e de letras rosadas, estampava na escuridão os dizeres:
- "Bolong-Long, goma de mascar. Muito mais tempo de hálito fresco. Desde 2017.”

- Lágrimas de Gasolina
Reciclar formado de agua

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