sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Portas e Buracos

A rua prolongava-se em uma gigantesca serpente solitária e escura. Luzes perdidas intercaladas entre postes queimados e postes amarelados traçavam um caminho que poucos gostariam de seguir. Becos abandonados, lixões em putrefação, paredes tomadas por pichações vulgares. O mundo real.

Caminhava a passos apressados, subindo a velha rua, fugindo de minha própria sombra, vez que não havia uma única alma vagando por entre as paredes maltratadas.

Exitei. Agora havia.

Na outra extremidade da rua, parada sobre um colossal poste, iluminada pela luz amarelada lusco-fusco que descia sadicamente sobre seu pequeno corpo, uma criança jazia parada. Fitando o chão, a criança permanecia ali, alternando o peso entre os pés. Para cá, para lá, e de novo para cá.

Continuei andando, subindo a rua, alheio a pequena criatura, até o momento em que ela levantou seus olhos.
Inundados por um branco leitoso, seu olhar arrancou todo o calor de meu corpo, deixando-me com um abraço gélido de desespero. Calmamente desencostou do poste e começou a andar em minha direção, mancando, soltando pequenos sons estranhos de todas as articulações de seu corpo.

Tec. Tec. Tec. Um estralo a cada novo movimento.

Tec.

Tec.

Tec.

Não diminui meu ritmo em momento algum, mas quanto mais andava, mais próximo dela eu ficava.

Com a proximidade, percebi sua pele. Branca, translúcida, dominada por veias estouradas que seguiam até as orbitas brancas de sues olhos.

E então ela parou. E o som do mundo parou.

As cores pararam, assim como o gosto de bile em minha boca deixou de existir.


Agora era um mundo preto e branco, abafado, surdo, e com ela parada em minha frente.

E seu sorriso. Um corte que estendeu-se de orelha a orelha, atravessando completamente seu rosto na horizontal. Aberto de tal modo bruto que todo o seu maxilar ficou exposto, a lateral de sua boca, um opaco febril ósseo mesclado ao sangue enegrecido da carne em putrefação.
Seu dentes, pequenas fileiras de caninos que se estendiam e multiplicavam-se desumanamente. Centenas de minúsculos dentes afiados e tortos que preenchiam aquela visão. Sangue seco escorria por entre eles e pelo seu queixo.

Abriu a boca, e pude ver aquele buraco. Um negrume colossal que revelava a ausência de língua. Apenas um buraco, apenas um buraco.

Apenas um buraco.

E disse:

- Vejo você em breve.

Joguei meu capuz sob minha cabeça, fechando-me em meu casulo de moletom. Puxei meus fones a minha orelha e isolei o mundo. The Strokes.

"Last night she said
Oh, Baby, I feel so down
Oh, and turned me off
When I feel left out"


Quando cheguei no cruzamento ao final da rua, olhei para trás, para ver se a criança continuava ali.

Ao fazer isso, subitamente não percebi o ônibus 3.85 que vinha em minha direção.

"So I, I turned around
Oh, baby, I don't care no more
I know this for sureI'm walking out that door"

E percebi, tarde demais, que aquela boca não era apenas um buraco, e sim uma porta.


Uma porta para o inferno.


Dedos Azuis

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