quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Ônibus 3.85 #8 - Projeções

Por que as coisas devem se limitar ao que são?

Levantou mais uma vez o bastão de madeira e atingiu o para-brisa do automóvel elegantemente estacionado na frente daquele gigantesco condomínio de escritórios. O dia estava nublado e um alarme rouco e metálico soava cada vez mais alto, interrompendo o cantar dos pássaros e atraindo a atenção de alguns olhares do alto do prédio.
- "O desgraçado surtou!" - Todos da sala de cópias começaram a gargalhar enquanto assistiam à cena pela janela - "Aquele era um belo carro!" - Disse o mesmo homem, com um ar de tristeza e ironia.
Era um carro lindo, disso ninguém duvidaria, pois bastava olhar para ele para ver que se tratava de um modelo do ano passado, completo, tinha as rodas cromadas, uma lataria encoberta por um tom cinza que tendia para o preto dependendo do anglo em que fosse visto. De fato, um belo carro.
- "Quer saber de uma coisa, Anderson?" - Gritou para todos que passavam, desferindo outro golpe, dessa vez atingindo o retrovisor externo - "Eu não preciso da droga desse emprego! Eu não preciso de uma promoção! Eu não preciso de você e nem de nenhum de seus parasitas! Eu não preciso de ninguém!" - Destruiu o que restara da janela lateral do carro, em seguida dirigindo um chute na porta do motorista.
As dezenas de olhos se posicionavam nas janelas do edifício, todos voltados para aquela figura que gritava para as paredes da fortaleza do Sr. Anderson. Alguns funcionários podiam ser vistos atrás das janelas pelo lado de fora, uns estavam rindo e comentando alguma piada com os colegas de trabalho, outros seguravam xícaras de café ou chá enquanto abafavam um olhar de admiração e uma minoria que permanecia sentada em suas mesas, trabalhando.
- "Aquele ali é o Sr. Anderson" - Disse o gerente financeiro apoiado à janela do terceiro andar, apontando para uma figura baixa e gorducha que se aproximava do louco destruidor de carros - "Ele vai ficar louco quando puder ver o que esse maluco fez com o teto solar do carro dele" - Completou ironicamente e soltando uma risadinha de canto de boca.
As nuvens estavam ficando cada vez mais escuras, as passivas e cinzentas nuvens que preenchiam os céus transformaram-se em massas disformes e agitadas cinza chumbo e as primeiras gotas começaram a cair sobre o assento descoberto do carro.
- "O que você está fazendo?" - O gorducho balançava as mãos ferozmente - "Você ficou louco?" - Gritou junto a uma trovoada distante.
O homem estava em pé sobre o capô do carro, balançava os sapatos sociais, espalhando os cacos que insistiam em descansar ao lado de seus pés. Soltou o taco e o deixou rolar em direção ao solo, estava digerindo as palavras proferidas pelo antigo homem que comandava seus afazeres.
- "Você não imagina o quanto este carro me custou!" - Esbravejou Anderson - "Este carro vale mais do que a quantia em dinheiro que você ganharia de salário e comissão em 10 anos de trabalho, seu imundo!" - Fez uma pausa - "Onde estava meu bom senso quando contratei um lunático como você?" - Completou, balançando negativamente a cabeça.
O homem girou o pescoço e apertou os dedos inchados pela grande pressão com que pressionara a haste do taco, formando um punho fechado, sentindo que poderia simplesmente esticar os dedos e esmagar facilmente a traquéia de seu antigo chefe.
- "Você era um bom funcionário, mas depois daquele incidente com a máquina de café você ficou estranho" - Continuou, seus ombros estavam molhados devido à garoa que se transformava aos poucos em chuva - "A policia já está a caminho!" - Disse roucamente após alguns segundos avaliando todos os gastos que teria com o seguro.
O homem pulou do automóvel e caiu em pé sem demonstrar qualquer centelha de esforço, se aproximou naturalmente daquela figura bem vestida, medindo sutilmente cada passo. As dezenas de faces os assistiam através das janelas embaçadas, ninguém mais estava trabalhando, o prédio parecia um gigantesco organismo único formado por pequenas faces cinzentas e curiosas.
Anderson olhou para cima, vendo seus funcionários o encarando e esboçou uma pequena fagulha de raiva somada ao medo do que poderia vir a seguir, afrouxou os joelhos, caminhando para trás, enquanto aquela figura movimentava as mãos e as esticava em sua direção - Um raio cortou os céus - E o homem as levantou, soltando um intenso rugido confundido pela trovoada que veio logo em seguida. Teve a mesma sensação que se tem ao encarar algum animal feroz e desconhecido, afrouxou demais os joelhos e escorregou para trás, sentando no chão molhado, sentiu as calças molhadas, se virou e correu pateticamente em direção às portas fechadas do edifício.
- "Mas que merda!" - Gritou quando percebeu que empurrava a porta com uma placa que dizia para realizar o processo inverso. Entrou, deixou a porta entreaberta e encostou o peito na maçaneta de forma que pudesse colocar a grande cabeça para fora e proteger os membros da ventania, deixando amostra apenas o rosto e parte dos dedos e pescoço.
- "Você é um escroto, Dante!" - Gritou mais alto que o ruído causado pela chuva - "Farei algumas ligações! Você não conseguirá emprego nesta cidade!" - Finalizou gaguejando e fechando a porta metálica.
Dante pôde ver através dos vidros das portas que conduziam para o salão de entrada, uma figura embaralhada e gorda falando com duas outras figuras uniformizadas, não conseguiria ouvi-las, mas sabia que faziam parte da segurança patrimonial do edifício. Olhou para cima e notou que alguns ainda o assistiam do alto das janelas, mas a grande maioria já havia voltado ao trabalho. Ouviu as sirenes ao longe e o ranger das portas metálicas, correu pelas ruas e nunca mais foi visto.

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- Lágrimas de Gasolina

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