segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O Ônibus 3.85 #10 - 45 53 43 4f 4e 44 45 52

"Não procures esconder nada; o tempo vê, escuta e revela tudo." - Sófocles

As chamas das velas oscilavam uniformemente fazendo com que as sombras da mobília e daqueles dois corpos sentados sobre o sofá se alongassem e escalassem as paredes. A maior parte do cômodo estava devorada pela escuridão que a cada minuto consumia mais alguns de seus centímetros, transformando a aconchegante aparência dos móveis rústicos em assombrosas peças de mostruário de alguma loja de velharias.
A figura de vestido azul sentada desleixadamente sobre as gastas almofadas direcionava seus olhos na direção do televisor desligado enquanto exprimia uma fisionomia consagrada pela mais profunda estranheza. Balançando involuntariamente os antebraços e direcionando as palmas entreabertas para cima à medida que escorregava a cabeça para trás, esperou alguns poucos segundos e fechou os olhos.
No momento em que suas pálpebras se encostaram, o garoto ao seu lado pôde ver o movimento epilético realizado por seus olhos, que desenhavam pequenas esferas confusas de pele. Suas sobrancelhas e nariz projetavam a natureza dos pensamentos que invadiam a sua mente: o abismático terror sentido por aqueles que viram o inconcebível.
O garoto esticou as pequenas mãos e colocou-as sobre a palma esquerda da mãe que convulsionava violentamente, arpejando uma musica amedrontadora ouvida apenas por ela, esticou o torso para se aproximar do rosto dela enquanto exprimia o desespero de uma criança que não compreende o que está acontecendo. Nunca a vira protagonizando nenhuma ação desmedida ou incontrolável como aquela, exceto pelos flagelos e os súbitos acessos de raiva que jamais pôde compreender.
Virou o rosto na direção do dele, ainda tremendo e de olhos fechados, os ombros balançando involuntariamente como os rodeiros de uma locomotiva desajustada e desferiu um ruído quase inaudível e inesperado:
- "Horas" - o garoto a olhava sem entender - "Que horas" - soltou a mão da mãe e correu na direção da mesa de canto, onde descansava o velho relógio de pêndulo, o apanhou rapidamente e o levou ao sofá. Sentou-se e esticou as mãos trementes, segurando o relógio em frente à face da mulher.
- "Que horas" - insistiu, sem abrir os olhos.
Trouxe o objeto para si e encarou os ponteiros por alguns instantes, tentando reconhecer os números e dizer as horas que nunca aprendera. Lembrou-se que os ponteiros formavam uma linha vertical sempre que fosse hora de jantar e que o ponteiro menor sempre andava um número quando o maior realizava a volta completa, disse:
- "São duas voltas" - olhou para a mãe que aguardava em silêncio, de lábios entreabertos e cabeça encostada no sofá. Não estava tremendo, mas seus olhos fechados continuavam a dançar - "Não" - voltou os olhinhos para o objeto e corrigiu - "Duas voltas e meia, depois do jantar".
A mulher soltou um longo suspiro, seus olhos não bailavam sob as pálpebras.
- "Oito e meia" - rosnou, desencostando violentamente o pescoço do sofá, apoiou as mãos sobre as almofadas e empurrou o corpo para se levantar, criando um rastro formado pelos seus cabelos castanhos que antes pendiam pacificamente por trás do móvel. Olhou para aquele garoto assustado que se agarrava ao macio tecido que envolvia a almofada e a pressionava contra o peito.
- "Ela vai me bater de novo!" - pensou enquanto seguia com os olhos a figura azulada cruzar a sala.
Dirigiu o olhar para o lado sem compreender por que sua mãe caminhava até a cozinha sendo que o cinto de seu falecido pai jazia ao seu lado, sobre o sofá. O cinto sempre fora a ferramenta preferida usada pela matriarca, então descartou a possibilidade de espancamento.
Ouviu o som das gavetas de talheres serem rapidamente manejadas e o tilintar dos objetos que descansavam lá dentro, os ruídos soaram mais algumas vezes até o momento em que múltiplos baques surdos atravessaram a cozinha e a sala, as gavetas estavam sendo fechadas sequencialmente e constatou que a meta da mulher fora alcançada.
A sala estava majoritariamente consumida pela escuridão, não era possível constatar o que havia nos cantos mais distantes, somente uma das velas estava acesa, travando uma batalha imaginária contra o breu absoluto, uma luta entre luz e trevas em que a claridade se perdia perante a implacável oposição. O silêncio que dominava a casa não era natural, uma ausência total de qualquer ruído, como uma planície desolada por onde nem mesmo o vento ou qualquer forma de vida ousa passar.
Esperou estaticamente por alguns segundos, fitando a porta da cozinha com os pequenos olhinhos repousados sobre a almofada, remexendo-os e demonstrando intensa curiosidade. Um calafrio atingiu-lhe as costas quando viu a escuridão por trás da porta entreaberta da cozinha tomar forma, um abismo humanoide e de vestido azul tornava-se cada vez mais nítido perante seus olhos, tentou reconhecer seu rosto, mas não pôde analisá-los sem ser frustrado pelo reflexo que atraia seus olhos. Um objeto metálico e brilhoso agarrado pela mão esquerda da mãe projetava a luz da vela na direção de seu rosto, em poucos segundos de analise soube que se tratava de uma faca.
Um ímpeto furioso tomou conta dos membros da mulher, transformando-a em um vulto azul cinzento que escorria violentamente na direção do sofá em que Igor jazia tapando os olhos com a almofada e rastejando para a outra extremidade do móvel. Saltou sobre o filho e ergueu ambas as mãos que seguravam a faca com firmeza, a apontou para seu peito e desceu os membros para apunhalá-lo pela primeira vez. Repentinamente, um breu consolidou-se por toda a extensão do aposento, a vela apagou e toda a escuridão consumiu a sala, deixando apenas uma leve e inútil brasa sobre o móvel e o som de algo que violava o espaço físico de algum objeto macio e sem vida.
Em êxtase e rodeada pela escuridão, desferia golpes cada vez mais violentos, soltava curtos gritos e gemidos enquanto ignorava todo o vestígio de realidade à sua volta. Não pôde notar que sua vitima tratava-se de uma almofada e nem que a porta da sala estava sutilmente entreaberta, denunciando um fugitivo.
Ela só cessou o esfaqueamento e retomou consciência da realidade quando os primeiros raios de luz, provindos do estranho evento não anunciado na televisão, cruzaram os céus daquela madrugada e iluminaram o amontoado de algodão e panos que se acumulavam nos pisos da sala.
Igor nunca mais foi visto.

Continua
Anterior

- Lágrimas de Gasolina

Nenhum comentário:

Postar um comentário